Por BBC

No empoeirado 2º andar de um cortiço no centro do Rio de Janeiro, há um grupo de ex-soldados esquecidos.
Eles têm cerca de 70 anos e se reúnem mensalmente para tentar vencer uma “segunda missão”, que já se arrasta por décadas: cobrar do governo reconhecimento e compensação financeira pelo que viveram e enfrentaram na República Dominicana.
O aposentado José Carlos Teixeira é um deles. Há 50 anos, ele desembarcava em Santo Domingo, capital da República Dominicana, de arma em punho e uniforme militar. Tinha apenas 19 anos.
Entre 1965 e 1966, cerca de 4 mil soldados brasileiros, em sua maioria jovens recrutas, seguiriam o mesmo rumo que Teixeira. Eles foram incumbidos de participar do destacamento brasileiro de uma força montada pela Organização dos Estados Americanos (OEA) para preservar a paz na República Dominicana, mergulhada à época em uma guerra civil que durou um ano e quatro meses.
“Éramos jovens, de 18 e 19 anos. Não tínhamos experiência militar e a grande maioria não havia sequer completado um mês de alistado”, lembra Teixeira à BBC Brasil.
No meio desse fogo cruzado entre rebeldes, forças pró-governo, estavam soldados estrangeiros, entre eles brasileiros. Era combate travado, que devido uma excelente estratégia dos nossos comandantes, em uma ano e quatro meses de guerra, dos brasileiros houve apenas 4 baixas.
Participação brasileira
Criada por decreto pelo então presidente do Brasil, General Humberto de Alencar Castelo Branco, a Força Armada Interamericana Brasileira (Faibrás) enviaria entre maio de 1965 e maio de 1966 cerca de 4 mil soldados, divididos em três contingentes, para “assegurar a paz” na República Dominicana.
O primeiro deles – do qual Teixeira fazia parte – chegou ao país caribenho em 25 de maio de 1965.
“O Brasil vivia sob regime militar. E nas Forças Armadas, ordens são cumpridas, não discutidas. Lembro-me de estar no quartel e ouvir que havíamos tido a ‘honra’ de participar da luta contra os comunistas na República Dominicana”, diz Teixeira.
“Quando minha mãe soube, passou mal. Ela era diabética. Não conseguiu nem me acompanhar ao aeroporto”.
“Ao chegarmos lá, no entanto, em vez de preservarmos a paz, tivemos de combater rebeldes, expondo a nossa vida, num clima extremamente hostil”, lembra.
Até hoje, Teixeira carrega no corpo as marcas da guerra ─ e na mente as lembranças de uma guerra que dizia não ser do Brasil.
“Vi companheiros sendo mortos. Certa vez, estávamos fazendo patrulha quando um franco atirador atirou em nós. Senti o calor da bala passando ao lado da minha orelha. O disparo acabou atingindo e matando um colega que estava atrás de mim. Tive sorte daquela vez, muita sorte”.
O ex-combatente interrompe a entrevista com a BBC Brasil para mostrar a cicatriz no braço direito.
“Esta cicatriz (Teixeira aponta para a marca visível em seu antebraço direito) foi causada por uma granada, lançada em minha direção por um rebelde”.
Retorno e direitos
A ofensiva contra os rebeldes se intensificou e foram realizadas novas eleições, com a vitória do candidato de direita, Joaquín Balager, apoiado pelos Estados Unidos.
Restabelecida a paz, a missão brasileira foi extinta em 23 de setembro de 1966, contabilizando quatro mortos (contra 470 durante a participação brasileira na 2ª Guerra Mundial). Ao retornarem ao Brasil, no entanto, os soldados acabaram dispensados do quadro efetivo das Forças Armadas.
Desde então, eles vêm batalhando junto ao governo brasileiro o reconhecimento que consideram de direito a uma pensão semelhante à recebida pelos soldados que lutaram na 2ª Guerra Mundial (1939-1945) – o benefício a esses últimos foi garantido pela Constituição de 1988.
“Muitos voltaram mutilados, feridos, com distúrbios psicológicos, cujas sequelas jamais serão esquecidas. Diferentemente da grande maioria, tive a chance de estudar (Teixeira é formado em Economia pela Universidade Federal Fluminense (UFF)), mas há inúmeros ex-combatentes hoje em dificuldades financeiras”, conta.
No entanto, iniciativas para conceder pensão especial aos ex-integrantes da Faibrás foram barradas pela Justiça e pelo Congresso, que apontam inconsistências legais no pleito.
Em 2001, a relatoria da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados rejeitou um projeto de lei do ex-deputado Roberto Jefferson que previa a concessão de uma pensão especial aos ex-combatentes que lutaram na República Dominicana.
Segundo o texto do relatório, a compensação financeira não é devida, pois não houve “operação bélica” naquele país, o que poderia abrir o precedente para que militares brasileiros atuando no exterior pudesse reivindicar o mesmo benefício. Quer dizer, os parlamentares dizem que não houve operação bélica no país, que ficamos 1 ano e 4 meses jogando cartas e tomando cerveja em São Domingos. Não estavam lá! E muitos jovens privilegiados, filhos de parlamentares, ou, filhos de pessoas ligadas ao governo, não embarcaram. Nós fomos para o enfrentamento, e os mauricinhos ficaram.
“Parece-nos que não há relação necessária entre a participação em tal força de paz e a geração de direito a benefício que tem nítido caráter de indenização, sendo reservado a quem, por lei, tem o reconhecimento da pátria por relevantes serviços prestados”. Para esses parlamentares, a nossa missão não foi relevante, e a Pátria não quer nos reconhecer.
“É o caso, por exemplo, da legislação que vem assegurando aos ex-combatentes da 2ª Guerra Mundial o direito a pensões especiais e privilégios que refletem esse reconhecimento pelo papel desempenhado no teatro de guerra”, conclui o documento da relatoria.
“A Lei nº 5.315, de 12 de setembro de 1967, exigiu para tanto que o ex-combatente efetivamente tivesse participado de operações bélicas, condição que teria que ser provada, e não presumida”, conclui o documento da relatoria.
Teixeira e outros ex-combatentes afirmam, no entanto, que não vão desistir dessa “segunda missão”.
“Vamos continuar reivindicando nossos direitos. Não fomos passear e nem jogar peteca com balas na República Dominicana. Cumprimos nossa missão com orgulho e honra”, finaliza.
Comentários
Postar um comentário